Temas como a defesa dos Direitos Humanos e o Pacote Anticrime proposto pelo Ministro da Justiça estão em pauta até 22/05
“Dona Rose é uma senhora. Mãe da Maria Eduarda. Quem é Maria Eduarda? Uma menina. Uma menina jogando basquete dentro da escola em Costa Barros quando começa um tiroteio nessa lógica de enfrentamento ao tráfico de drogas. Mais um tiroteio. Nele as balas entram na escola. As crianças começam a correr, os professores tentam protegê-los. Elas saem da quadra, conseguem. Vão em direção ao portão da escola, uma entra, outra entra, a terceira entra, a quarta entra. Quando a Maria Eduarda foi entrar três tiros interromperam a vida de uma menina. Por trás de conceitos tem sangue, tem suor, tem nomes e memórias. Muitas vezes nossas conversas ficam panfletárias, perdendo capacidade de escuta e deixando de perceber que na ponta tem infância interrompida, mães chorando. Assassinato não é acaso no Brasil, é regra. Maria Eduarda se foi em nome do quê? Do combate ao tráfico. Sempre é em nome de uma coisa justa [...] Não é para combater o tráfico, o efeito normal e esperado disso é choro de mãe preta, é velório de criança com matéria sensacionalista que vai tentar justificar; porque a Maria Eduarda já morreu antes de morrer, é pobre, é negra, é da periferia, o nosso olhar já matou ela há muito tempo”. A mensagem é certeira. Diante dela, há o silêncio. Em um auditório com mais de 300 pessoas nem sequer uma palavra é capaz de quebrar o silêncio que grita na palestra com mais retorno de público no primeiro dia da Semana Jurídica. No dia 20 de maio, olhos e ouvidos se voltavam para Henrique Vieira.
Pastor, ator, poeta, professor de História, de Sociologia e colunista, Vieira veio ao Unilasalle-RJ a convite da professora Flávia Maia, para falar a estudantes universitários que se tornarão bacharéis em Direito sobre os Direitos Humanos, “valores universais que apontam a inegociável dignidade humana”. A definição do tema discutido veio em menos de dez minutos: “O ser humano carrega um valor próprio. Esse valor depende de onde ele nasceu? Não. Depende do seu gênero? Não. Depende da sua renda ou do seu endereço? Não. Depende da sua nacionalidade? Não. Basta ser humano para carregar esses direitos de expressão, de ir e vir, à alimentação, à moradia, às oportunidades, à liberdade de crença. Eles são intrínsecos à experiência humana. Nasceu tem esses direitos e eles precisam ser respeitados”.
Em sua explanação, Vieira recorreu ao ponto de vista histórico, jurídico e da teologia judaico-cristã para atestar a necessidade de tais direitos, mas centrou sua fala principalmente na dificuldade de aferi-los. A partir da constatação de que, na prática, os Direitos Humanos são frequentemente deixados de lado, o historiador apontou um “descarte da humanidade” por meio de “carnificinas crônicas, genocídios históricos, quase quatro séculos de escravidão, interdições às mulheres, aos indígenas, aos quilombolas, às LGBTs” e também através de grades, “retrato do nosso fracasso civilizatório. Só aumentam os índices de homicídio, aí sentimos mais medo e pedimos mais punição, aumenta o encarceramento, aumenta o homicídio. Onde esse ciclo vai parar?”
O motivo para o cenário paradoxal entre teoria e prática, Vieira atrela à existência de lentes. Aquelas que faziam com que ele ainda menino falasse “Em nome de Jesus, que caia por terra” ao ouvir sobre religiões de matriz africana. “Eu precisei de tempo, de lágrima, de humildade, de escuta, de convivência para trocar a lente, para perceber o caráter racista da minha religiosidade”, confessou reiterando que lentes selecionam:
“Produzimos um olhar, uma forma de perceber o mundo que seleciona pessoas, que nos faz olhar para determinados corpos e não ter empatia, e não ter sensibilidade, e não ter reciprocidade. No limite, não nos reconhecemos no outro. Existe um olhar que cria a imagem de sub-humano ou, na teoria de Achille Mbembe, humanidade subalterna, gente que é menos gente do que a gente. E se é menos gente, se é vítima de violência pouco importa, se é exterminada cultural ou fisicamente pouco importa. A lente que usamos para enxergar já definiu quem a pessoa é, ela não tem mais direito de ser”.