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A cinza traça caminhos imprevistos no ar. Pequena partícula, ela carrega consigo a história do objeto que um dia foi, agora indefinido, entre tantos outros traços de lembrança sem cor, sem forma, sem razão de ser. As chamas iniciadas dia 2 de setembro encheram de cinzas o céu naquela madrugada. No bicentenário do Museu Histórico Nacional, prédio, acervo, pesquisas se transformam em fragmentos suspensos e uma palavra ecoa perdida, até hoje, quase dois meses após a tragédia: memória. Para discutir sua importância no patrimônio e em museus, os cursos de História e Pedagogia, representados pela coordenadora Eloisa Souto, trouxeram ao Unilasalle-RJ o encontro das especialistas Aline Montenegro Magalhães e Leila Bianchi Aguiar, na noite do dia 17 de outubro.

Ex-professoras da casa, ambas desenvolvem pesquisas na área da preservação e memória. Enquanto Aline é técnica em assuntos culturais/história no Museu Nacional, Leila é professora da graduação e pós-graduação em História da UFRJ, além de pesquisadora do Núcleo de Documentação, História e Memória da Unirio. Lado a lado na mesa do evento, elas responderam conjuntamente a perguntas da plateia, mais de uma relacionada ao incêndio de setembro. Antes, porém, cada uma teve sua explanação individual, em discursos que se mostraram, por fim, complementares.

Leila iniciou sua fala recorrendo a Maurice Halbwachs, autor que trabalha com a perspectiva da memória relacionada ao tempo vivido, ao presente. “A partir desse entendimento, a memória seria permanentemente construída. Ela que, ao mesmo tempo, está ligada à identidade. Nós somos o que nós somos a partir das memórias que construímos, do que vivemos. E, por isso, é fundamental entendermos que memórias são essas em disputa permanente”, sintetizou, recordando que nomes de praças e ruas, como “construtos da memória”, também se tornam objetos de conflito. Embora a clara alusão a exemplo recente, a pesquisadora da Unirio não deteve-se apenas ao hoje, voltando à Revolução Francesa e aos questionamentos sobre destruir ou não símbolos do Antigo Regime. Também não ficaram de fora da palestra, a percepção de que os primeiros patrimônios são ligados à administração pública ou defesa nacional; a história do tombamento de Ouro Preto; e a ligação entre o fato de os arquitetos no Brasil serem vistos, até determinado período, como os mais aptos a discutir patrimônio com a preservação inicial pelo aspecto estético.

Outro destaque da abordagem de Leila foi a discussão em torno das memórias outras, chegando a citar a escritora Chimamanda Adichie e o alerta da nigeriana em torno do “perigo das histórias únicas”, que motivou TED de igual nome em 2009. “O Museu da Maré é muito significativo neste sentido”, pontuou Leila, “com a democratização e construção de memórias identitárias. Um dos integrantes do grupo que o formulou morava na Maré, estudava na UFRJ, mas tinha muita vergonha de dizer de onde vinha, já que a única imagem construída àquela altura da Maré era a da violência. O museu tenta formular outras imagens. Traz o tempo da violência, inclusive com esculturas feitas das balas coletadas, mas tem também o tempo da pesca, que fala sobre os primeiros habitantes, o tempo das brincadeiras... O museu tenta não se limitar a uma história única”.

O percurso para a constituição de histórias múltiplas nos museus foi a contribuição deixada por Aline Magalhães logo em seguida. Em sua retrospectiva, a pesquisadora abordou como o Museu Nacional vivenciou diferentes fases, indo da “história da pacificação, em uma supervalorziação da colonização portuguesa, com a história da Igreja, dos estadistas, da aristocracia muito valorizada, mas negros e índios quase silenciados”, no período de 1822 a 1922, até exposições como o Museu das Remoções, de 2017: “Tivemos a doação dos vestígios arquitetônicos das casas demolidas na Vila Autódromo, recebemos esculturas feitas com esses vestígios e aqui trago fotos de como esta narrativa vai ser contada. Vamos ter o basculante da casa da Dona Penha dialogando com os azulejos do convento dos jesuítas, que também foi demolido no processo de reformulação da cidade”.

Aline criticou na ocasião o imaginário que se constitui em torno dos museus, responsável por gerar uma falta de identidade. Assim, tanto anúncio da Revista Manchete de 1965, quanto tirinha de Zoé e Zezé de 2005 e anúncio de campanha de agasalho de 2015, com o slogan “Seu armário não é museu”, trarão a imagem negativa desses espaços. Na tirinha, por exemplo, Zoé conta ao irmão que os pais os levarão ao museu, o que é encarado pelo personagem como um castigo. “O que fizemos a eles?”, pergunta, ao que a irmã responde: “Nada, acho que eles só estão sendo malvados”. “O museu aparece, assim, como repleto de objetos de tempos muito distantes do nosso. É importante se criar uma política para promoção do conhecimento sobre esses passados construídos no museu, mas também se pensar em outras narrativas para que ele não fique tão rotulado”, defendeu.

As decisões do Estado sobre os museus não ficaram de fora da fala de Aline. A técnica do Museu Nacional retomou conquistas da área, como a Política Nacional de Museus, de 2003, e lembrou da criação do Instituto Brasileiro de Museus, “em 2009, ficando ele responsável pelos museus federais e pela implementação da Política Nacional, que envolve a criação e o apoio aos pontos de memória (o Museu da Maré é um deles), correspondendo à demanda por memória de grupos que não se viam representados. Se vivenciaram muitos avanços desde então, até no âmbito da educação, com a abertura de cursos de museologia no país”. Na abordagem da pesquisadora, ficou clara sua visão da Medida Provisória 850/2018 enquanto ameaça para as melhorias levantadas: “Este ano, após o incêndio, fomos surpreendidos com medidas que são consideradas retrocessos à Política Nacional de Museus. A MP implica na criação de Agência Nacional de Museus, instituição privada que substituiria o Ibram. Corremos risco de que as atividades desenvolvidas atualmente nos museus fiquem à mercê dos interesses de mercado”. Confira abaixo trechos na íntegra referentes à reflexão sobre o tema:

“Não podemos simplificar o incêndio em uma questão de gestão. É uma conjunção de fatores que envolve verba, o fato do prédio ser preservado pelo Iphan (em que medida o prédio pode sofrer reformas sem prejudicar o seu valor documental?), as questões burocráticas... A maioria dos museus são instituições instaladas em edificações requalificadas, ou seja são construções que não foram criadas para serem museus. A questão é conciliar a preservação do valor documental dessas construções com as necessidades de um museu. Essa tragédia foi vista como uma janela de oportunidade para dar início ao processo de privatização dos museus. Ou seja, é o seu patrimônio, o nosso patrimônio, nas mãos de uma agência que estará a serviço de empresas. As medidas provisórias excluem, ou diminuem muito, o papel do Estado na prestação desse serviço, que é conquista da constituição de 1988” – Aline Magalhães.

 

 

“É importante pensarmos que as políticas de cultura, assim como as políticas da educação têm que ser políticas de Estado e não de governos, que mudam e há uma descontinuidade enorme em tudo o que vem sendo feito. O caso do Ibram é emblemático. O Ibram foi um grande avanço e, por uma medida provisória, foi extinto. Agora está uma luta porque não houve conversa com ninguém na área de museus para se fazer as mudanças. É um pouco esse o grande desafio, ter essa política de Estado que considere que é importante uma formação humanista envolvendo, por exemplo, o direito à memória, o direito à cultura. Quando isso é suprimido em um ou dois anos, se perdem 20 anos de trabalho. No caso do Museu Nacional, com o congelamento de verbas, foram 200, porque se perdeu aí não só boa parte do acervo, mas o trabalho de uma instituição, como ela conseguiu coletar e tratar essas peças, como as exposições foram montadas” – Leila Aguiar.

O recente resgate do crânio de Luzia, fóssil mais antigo já encontrado no cotinente americano, traz o alento de que nem tudo jaz apenas como fragmento suspenso no ar. Finitas as cinzas, é a vez de arregaçar as mangas, tendo em mente que reeerguer o Museu Nacional é missão coletiva, como explicitado pelas pesquisadoras, mas também pelo sociólogo francês Maurice Halbwachs, cujo nome Leila incluiu em sua explanação. Para ele, "não basta reconstituir pedaço por pedaço a imagem de um acontecimento passado para obter uma lembrança. É preciso que esta reconstituição funcione a partir de dados ou de noções comuns que estejam em nosso espírito e também no dos outros" (HALMWACHS, 2013, p. 39). 

Por Luiza Gould (texto e fotos)

Ascom Unilasalle-RJ

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