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No final de outubro a Universidade La Salle sediou o III Seminário Internacional Constitucionalismo no Século XXI: Direitos Humanos. Entre os palestrantes estavam os pesquisadores de origem africana Bas´Ilele Malomalo e Jean-Bosco Kakozi Kashindi. Eles participaram do painel África: aproximações ao Ubuntu. Antes conversaram com nossa equipe de jornalistas sobre racismo, políticas de afirmação para população negra, Ubuntu e o combate ao racismo, entre outros temas.  As entrevistas completas você confere abaixo.

Bas´Ilele Malomalo - Doutor em Sociologia, Docente no curso de Bacharelado em Humanidades e no Programa de Mestrado Interdisciplinar em Humanidades, Instituto de Humanidades e Letras/Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, São Francisco do Conde, Bahia, Brasil.

Pergunta: o Professor, o senhor realizou um estudo sobre as políticas públicas de ações afirmativas para população negra de 95 a 2009 aqui no Brasil. O que o senhor conclui na época? Esse cenário se modificou no tempo atual em que vivemos?

Malomalo – De fato o livro “Repensar o multiculturalismo e o desenvolvimento no Brasil: políticas públicas de ações afirmativas para a população negra (1995-2009)" tinha dois esforços. O primeiro construir um quadro teórico para pensar essas realidades, no caso, olhando para períodos de 95 a 2009/10 onde havia um debate sobre cotas e ações afirmativas. Havia poucas publicações sobre isso, se dizia que politicas como cotas ajudariam para desenvolvimento da população negra, mas não tínhamos gente escrevendo. A segunda parte é analise de programas. Foram analisados quatro programas. A avaliação que temos naquele período sãos as desigualdades. Em 95, quando população negra vai para rua na chamada Marcha Zumbi pela Vida, em Brasília, as organizações negras pressionam governo Fernando Henrique Cardoso colocando na pauta o problema de desigualdade como resultado o do racismo, da escravidão. O governo reconheceu que havia problemas e começa a criar grupos de trabalho para lidar com isso. Depois isso vai se reforçar em 2003 com governo Lula. Dentro desse quadro, o livro mostra que o país entrou em outra perceptiva, debatendo o que não debatia. Por exemplo na educação tivemos acesso de jovens negros e negra no ensino superior. Esse ponto é positivo se olharmos o quadro do livro até 2010. Digamos que sim, avançamos. Mas o quadro atual aponta outra perspectiva.

Pergunta: Como o senhor avalia o crescimento dessas correntes extremamente racistas e até, em alguns momentos, nazistas ao redor do mundo? Aqui no Brasil temos episódios isolados, mas sabemos que nos Estados Unidos tivemos movimentações coletivas nesse sentido. Como o senhor avalia esse tipo de situação?

Malomalo - É uma bela pergunta. O Brasil é um pais de tensão, mas atravessamos de forma tranquila até agora. As pessoas de direita, centro, fascista, neonazista, havia uma diferença entre essas pessoas.  Mas a conjuntura atual ficou muito confusa. Os partidos que têm predileção democrática, em nome do poder, não estão conseguindo seguir sua ética. O que tem acontecido e temos percebido é que houve uma aliança do centro e da direita com a ultra- direita, dentro dela a os fascistas. Aí o que a gente percebe é o discurso de fascista. É um discurso antifeminista, anti-imigrantista, anti-comunidade LGBT, anti-indígena, anti-pobre. É um grupo se mobilizando para o que consideram marginal e não vão acolher e dialogar. É um quadro confuso, mas fica confuso em nome do poder. Alguns que nem são fascistas se deixam levar. Tem também um quadro de neoliberalismo. E falamos agora das pessoas comuns, que realmente são fascistas e estão mostrando a cara. Eles nunca saíram para dizer isso, mas hoje não tem vergonha, nem moral e ética. Alguns usam até o nome de Deus. A gente vem acompanhando matança de homo afetivos, de lideranças de religião de matrizes africanas, matança de imigrantes. Mas convenhamos entre nós, esse pais não é uma país que nasce de imigração? Ou as pessoas não conseguem se enxergar? É uma pais que nasce nas contradições. O povo pode até ter um grande coração, mas a elite é uma elite muito perversa. Aí está a importância da educação e de discutir de novo para nascer a esperança, sem isso estamos um quadro muito complicado.

Pergunta: Sabemos que o racismo no meio acadêmico ainda existe. Apesar da políticas de cotas são poucas as lideranças negras, indígenas, mulheres dentro do sistema acadêmico. Quais as consequências disso? Estamos mudando?

Malomalo – Nós fizemos esforços, o Brasil fez. Como fiz no quadro ne. Ainda em 2001 começa a surgir a política de cotas, mas há uma tendência de dizer não para isso. Isso se radicalizou em 2003, embora em 2003 o governo Lula tenha tido dificuldade para votar as cotas. O Prouni do ponto de vista política partidário não era interesse naquele momento, ai se criou o Prouni e se pega recursos para canalizar para camada mais pobre. Não só negro, embora a população negra reivindique mais sua inclusão. Eu chamo isso de justiça solidaria, é ter uma justiça histórica da população que luta, mas na hora de fazer acordo o arranjo é criar cotas étnico-raciais e sociais que beneficiam, por exemplo, pessoas auto declaradas pretas, pardas ou indígenas. No caso das Sociais, quem tem baixa renda e fez ensino médio em escola pública. Na época muitos municípios criaram secretarias para população negra, indígena e LGBT. E onde estamos hoje? Parece que voltando atrás. O Estado, que deve tomar posição, parece que não está tomando. Ou por não compreender que isso é essencial, o que estamos falando aqui é cidadania. São direitos. Um quadro muito triste, mas precisamos continuar a debater como estamos fazendo aqui no Congresso. Isso é importante, quem sabe alguém nos escuta. E para aqueles que estão fora daqui, temos tarefa de falar com a familiares, pessoas mais próximas. Temos usados mídias sociais porque estamos em uma guerra simbólica. Então não podemos desistir. Somente a história vai dizer quem tem razão. Por isso a educação é tão importante.

Jean-Bosco Kakozi Kashindi - Doutor em Estudios Latino-americanos - Universidad Nacional Autónoma de México (2015) e pós-doutorado em direito (área de direitos humanos) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos/São Leopoldo/Rio Grande do Sul). Professor do Instituto Latino-americano de Arte, Cultura e História (ILAACH), da Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA).

Pergunta: O que é Ubuntu e como ele se relaciona com as questões de combate ao racismo?

Kashindi - É uma questão interessante. Ubuntu resumidamente se traduz como humanidade. Mas é uma humanidade que está sempre, é inter-relação, interdependência e essa interdependência é vital. Ou seja, sempre se fala da interdependência vital. O que quer dizer? Que a gente como humanidade, como espécie humana, depende dos outros seres, tanto humanos quanto não humanos. Porque para comer, viver, respirar, a gente depende dos outros seres. Vivos ou inanimados. Qual seria o desdobramento para lutar contra o racismo desde a perspectiva do Ubuntu? A primeira coisa que vejo é essa abertura e reconhecimento dos outros seres humanos. Porque não pode existir um humano sem outros humanos. A humanidade se define pela diversidade. Não existe ser humano que é igual ao outro. O racismo é uma negação da diversidade.  É uma inferiorização, uma exclusão, de outros tipos de humanos, de outros humanos pelo jeito que são esses humanos. Pela cor, pelos traços, pela situação econômica, cultual, se discrimina, exclui e desagrega. Isso é o racismo. Mas a partir das perspectivas do Ubuntu isso não pode existir. Nenhum ser humano pode ser absolutamente inútil, sempre tem mecanismos de integrar, unir a outro ser humano. Dessa forma o Ubuntu luta contra exclusão o racismo.

Pergunta: Eu vi uma fala do senhor sobre o conceito de raça ser instável e que pode se resinificar a partir do ponto de vista de onde estamos. O senhor pode explica mais sobre esse conceito?

Kashindi - Raça é um conceito, exatamente como você falou: instável. O que quer dizer conceito? É uma palavra, um termo que vai se enchendo de significados. No percurso da história, a partir da evolução da humanidade, essa palavra foi adquirindo muitos significados. Antes, na Idade Média sobretudo, raça era neutro. Significava linhagem. E com linhagem você poderia colocar linhagem boa ou má. Mas também tinha significado negativo, raça era uma coisa ruim. Até mácula, mancha. Raça tinha a ver com a religião, cristianismo. As pessoas que tinham manchas eram os judeus e os mouros. Não tinha a ver inicialmente com cor da pele. Mas quando os ibéricos chegam as Américas, com a conquista e destruição dos povos originários, raça muda de significado. Deixa de ser aquilo que tinha a ver com religião e passa a significar a cor da pele. E isso levou as mesmas consequências. Os espanhóis e portugueses proibiam ao acesso do saber, poder, para judeus e mouros. Aqui essa proibição era para índios e negros, que tinham raça. Você tem mancha não pode acessar aos colégios, ao exército, a muitas funções públicas e sobretudo não pode acessar o saber e ao poder. Isso é o início de tudo, do racismo e das desigualdades.

Perguntas: Temos no Brasil institucionalizada a política de cotas para acesso ao ensino superior e nós estamos em uma universidade. Como o senhor avaliar a política de cotas?

Kashindi - Eu sou a favor da política de cotas, porque tudo começou, a desigualdade, o racismo, começou e foi sustentado pelo Estado, pelo poder. O poder proibia o acesso aos âmbitos do saber. O saber leva ao poder. Por isso também essa luta. Muitos que sempre têm estado no poder, agora ficam com receio dessa abertura para outras populações ascenderem ao poder. Porque o saber leva ao poder e muda o poder. Para mim, ainda falta mais para essas políticas concretizarem seus objetivos. Foram 500 anos de segregação, de apartheid, embora aqui no Brasil, os brasileiros não gostem de falar esse termo. Aqui no Brasil só não tiveram leis, mas apartheid existiu. As políticas de cotas são muito necessárias, mas não devem ser como uma coisa perene, de sempre, para eternidade. Acho que deve ser algo transitório para fazer que todas essas camadas de populações que foram marginalizadas e excluídas possam entrar, possam se libertar. Serem seres humanos e seguir um caminho do seu jeito, mas dentro do mesmo Brasil. E aceitar essa diversidade, as políticas devem fazer esse trabalho de incluir sem apagar as diferenças. E depois seguir com essas políticas universais, porque cotas são focadas para uma população, bem identificada, mas depois deve ter uma política universal de bem-estar. Com isso já não vai haver necessidade de cotas. Como países escandinavos onde não tem cotas, porque tem mais distribuição da renda.

O Brasil tem um grave problema. Tem momentos que eu chamo de catarses coletivas e acho que Brasil precisa desse momento. Tem muito ódio, mas também muita tristeza, desesperança, muito rancor não expressado por tudo o que aconteceu com as desigualdade e racismos. Acho que é um assunto de todo mundo, branco, preto, indígena, etc. O racismo é um mal, se você exclui alguém você está lhe negando a humanidade, então você está desumanizando ele ou ela. E quando você desumaniza, também na perspectiva do Ubuntu, você vira um desumanizado. Um humano que desumaniza ele se desumaniza também. E se todos se desumanizarem eu não sei onde vamos acabar, é a destruição.

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